O Conselho Regional de Psicologia de Goiás (CRP09) entrevistou a psicóloga Cida Alves, doutora em Educação e que trabalha há cerca de 25 anos com o acompanhamento de vítimas de violência na Secretaria Municipal da Saúde de Goiânia. Ela é uma das idealizadoras do “Bloco Não é Não”, bloco de carnaval que surgiu em 2017 na Cidade de Goiás e que se tornou emblemático na luta contra a importunação sexual e sobre as formas de violência sexual que são cometidas contra as mulheres. O “Bloco Não é Não” também defende a importância de trabalhar ainda na infância o conceito de consentimento. Confira a entrevista completa abaixo.
1 - Como surgiu “Bloco Não é Não"?
O “Bloco Não é Não” surgiu em 2017, no Carnaval da cidade de Goiás, a partir de uma brincadeira com uma amiga psicóloga que foi presidente do CRP09, a Ionara Rabelo. Nós planejamos passar o Carnaval na cidade e pensamos em criar um bloquinho. Somos feministas e há muitos anos trabalhamos com a defesa de direitos de crianças, meninas e mulheres. A, automaticamente veio na minha cabeça “Não é Não” e ela aceitou na hora. Assim surgiu o “Bloco Não é Não”, uma brincadeira entre amigas, um gesto de cuidado e carinho festivo entre mãe, filhas e amigos. Eu pensei que o Bloco ficaria só nessa ação na cidade de Goiás, mas a nossa passagem por Goiás foi marcante. Nós conseguimos uma parceria muito boa com o grupo de pesquisa G-Sex, composto pela psicóloga Ionara Rabello e a Meire Carvalho. E fizemos oficinas com as alunas sobre esse tema da importunação sexual, sobre as formas de violência sexual que são cometidas contra as mulheres, e a importância de trabalhar muito cedo o conceito de consentimento. E no dia a gente sai num bloquinho pequeno.
Nós conseguimos o apoio do grupo de percussão do Caçador, que, sem eles, a gente não conseguiria descer a avenida. E chegamos pequenos ali no Coreto, mas, quando as crianças me viram fantasiada, ficaram encantadas, me cercaram e as mães pegaram na mão delas e descemos. E, quando a gente viu, a gente tinha uma multidão atrás do bloco. Foi muito lindo, muito importante. Nós tivemos apoio da Secretaria de Turismo da Cidade de Goiás, na época, que colocou o nosso bloco na programação do carnaval da cidade, e foi um sucesso. Pensei que ficaria nisso, mas, em 2018, fui para o carnaval de Recife. E lá eu entendi a importância, de forma muito profunda, do Carnaval, como raiz cultural muito agregadora, muito fortalecedora da identidade do povo brasileiro. E, em 2019, com a ascensão da extrema-direita, do ultraconservadorismo, do fundamentalismo e um discurso antiquado, arcaico, de uma ministra dizendo que menino deve vestir azul e meninas vestem rosa, nós fomos convocadas a sair no Carnaval. E fizemos uma brincadeira, em 2019, em que invertíamos, eu usava azul e meu companheiro usava a bandeira usava rosa. E a gente espalhou amor pela avenida e qualquer forma de amor a gente acredita que é válido e é bonito.
2 - Como você avalia os resultados alcançados pelo bloco "Não é Não"? E desde a criação como tem sido o envolvimento das pessoas com a proposta do bloco?
O “Bloco Não é Não” tem seis anos de apresentação consecutiva em Goiânia. Cada ano nós levamos um tema. Somos um bloco de carnaval, defendemos a alegria como uma trincheira. Nós apostamos na alegria como um afeto revolucionário, transformador, promotor de saúde mental e de mudança de entendimento sobre o que é o outro, sobre o que é o mundo. Mas a gente é também um grupo de ocupação política e cultural. E nós temos três bandeiras chaves, que é o enfrentamento à misoginia, que é esse afeto muito primitivo do patriarcado, de aversão e no limite até ódio contra qualquer manifestação do feminino, do que socialmente foi construído como feminino na nossa cultura. O enfrentamento à cultura do estupro, que faz com que meninas e mulheres sejam culpabilizadas pela violência sexual sofrida e a ideia de que o homem é instintivamente um predador sexual, que quem tem que se proteger são as mulheres. Isso é muito prejudicial para a emancipação e o desenvolvimento pleno da identidade feminina, da potência sexual, porque remete a ela a uma repressão, ou seja, se ela não quer ser violentada, quer que ela seja casta, recolhida, esteja sempre em um ambiente privado. É por isso que a gente vai para a rua no carnaval, porque é no carnaval que a gente está para brincar, para paquerar, a gente está sensual e a sensualidade é algo muito potente, faz parte da nossa plenitude como ser sexual. E aí a gente diz não, a gente vai para a rua. A rua é o nosso lugar, nós não precisamos ficar restritos ao espaço privado. Quem tem que se controlar são quem comete violência e não as mulheres.
Então, não é o nosso jeito de vestir, não é como nós estamos, não é o nosso comportamento, nem onde nós estamos que justifica uma situação como a violência sexual, que é um crime hediondo. Outra bandeira importante é a liberdade e a integridade sexual de mulheres e pessoas da população LGBTQIAPN+. Nós sabemos que uma força muito poderosa que é contrária à libertação sexual das pessoas é a repressão sexual e a violência faz uma aliança com a repressão sexual. Parecem forças antagônicas a violência sexual e a repressão sexual, mas ambas têm a mesma função que é tolir, castrar ou destruir mesmo o pleno desenvolvimento da sexualidade humana. Então a gente está na rua para defender nossa liberdade. O erotismo faz parte da manifestação humana, tão linda como a poesia, como diz a Anaïs Nin, que faz parte do nosso manifesto. Nós temos o manifesto. Então é isso, nós estamos na rua para dizer não a qualquer forma de ataque à nossa liberdade e integridade sexual. E defendemos a cultura popular, o samba. O samba que é uma das forças mais intensas, libertárias de resistência do povo negro nesse país que foi forjado na escravidão. Então a gente está aí do lado da cultura popular, das artes, do samba, para levar a nossa mensagem.
3 - Essa mensagem surte efeito imediato na festa do carnaval de Goiânia ou ainda existe resistência por muitos em entender a proposta do “Bloco Não é Não”?
Nós aprendemos muito nesses mais de sete anos, a força da cultura. Eu sou psicóloga, doutora em Educação e sempre vou levar a mensagem da importância da educação no desenvolvimento de qualquer sociedade, mas hoje eu tenho uma convicção muito forte. A cultura é que leva a uma identidade de nação. E foi a cultura que resistiu bravamente nesses anos obscuros, onde a gente viu tantas forças retóricas contra a ciência, contra os direitos humanos, os ataques às mulheres, tanta misoginia, LGBTQIAPN+ fobia. E a cultura foi a energia, a força que levou adiante a virada da nossa nação e a retomada de um país democrático, alegre, nosso povo é lindo, nossa cultura é maravilhosa, nós não temos que importar nada. Chega dessa visão colonialista. Somos nós que vamos construir nossa própria identidade nacional com a força dos nossos povos originários, com a força do povo negro, aliando com outros que chegaram e que são sempre bem-vindos à nossa nação.
4 - A mensagem do “Bloco Não é Não”mensagem vai além do carnaval. A festa propicia um momento favorável para trabalhar a temática, mas é preciso ir além para outras épocas e festas durante todo o ano?
O espaço público e de lazer ainda é um espaço muito hostil para as mulheres, inclusive o espaço da política. Acontecem muitas violências sexuais, muitas importunações sexuais. E existem relatos dramáticos. O “Não é Não” é o movimento nacional que surgiu em 2017 em razão de um estupro coletivo de uma menina jovem por 40 homens. Então, o espaço de lazer precisa se preparar para proteger e dar segurança às mulheres. E por isso que nós batalhamos tanto no ano de 2023 para trazer para a Goiânia uma adaptação do protocolo “Não se Cale”, que é o protocolo que já existe há muito tempo na província de Barcelona (Espanha) e que foi o instrumento que levou à prisão imediata de um jogador acusado de estupro, o jogador Daniel Alves. Esse protocolo protegeu a imagem da vítima. Então, nós conseguimos aprovar uma lei municipal aqui em Goiânia do protocolo “Não é Não”, inclusive com alguns avanços em referência ao próprio protocolo de Barcelona. Nós tivemos a parceria de duas vereadoras, a Kátia Maria e a Sabrina Garcês. Já aprovamos em Goiânia e também precisamos aprovar no Estado. Conseguimos uma grande vitória em 28 de dezembro do ano passado, que foi a sanção pelo presidente Lula da Lei “Não é Não” que estabelece que os estabelecimentos de lazer criem regras para a proteção e a segurança das mulheres ampliando a igualdade de gênero.
5 - Qual é o recado que o “Bloco Não é Não” quer deixar para toda a sociedade?
Sobre o próprio “Não é Não”, o papel dele na nossa sociedade. Eu sou suspeita porque a gente tem tido uma gratificação enorme com o “Bloco Não é Não”, com as mulheres que compõem o “Bloco Não é Não”. Nós conseguimos agregar um conjunto de mulheres, de pessoas de uma qualidade humana, de uma potência artística e de um engajamento político inacreditável. Eu nunca participei de um grupo tão bonito, tão coeso, tão revolucionário como o “Bloco Não é Não”. E ele acabou tomando a cidade. Ele é muito reconhecido. Ele é muito convidado para estar presente em eventos, manifestações, seminários que envolvem o tema do direito das mulheres. Especialmente, nós acreditamos que o grande valor dele é quando ele é convocado. Então, mulheres que estão passando por situações de grave violência, sejam elas institucionais, violência de gênero, quando não vêem muito recurso, sofrem muito nesse processo de defesa dos seus direitos, elas pedem que nós gritemos por elas. Foi assim com as vítimas de um assediador sexual e moral do TJGO, elas estavam vivendo uma situação gravíssima e pediram ajuda. E nós fomos para a porta do TJGO com outros grupos, com outros coletivos e reforçamos a luta delas e, elas saíram vitoriosas.
Foi assim com o caso da Marri Ferre, que a mãe viu nossa manifestação na internet, no dia 8 de março de 2021. E nós fomos para a rua também, nesse ato de apoio à Marri. E a gente segue participando da cidade, da movimentação pelos direitos das mulheres, das meninas e também das outras identidades femininas que nós consideramos como irmãs. As mulheres trans, as travestis, as gays afeminadas e toda e qualquer identidade que traz no seu corpo, na sua identidade feminina como um valor. Se existe resistência na cidade na presença do bloco? É o contrário. É muito interessante. Por isso que a cultura e a arte chegam primeiro. Ela toca o sensível das pessoas. Como sempre, nós vamos muito fantasiadas. Isso traz um encanto nas pessoas. E que talvez quebre as resistências. No sentido de nos atacar, de fazer algum tipo de comportamento mais violento. Normalmente, quando a gente chega no espaço, seja na rua, seja na praça, seja no baile, seja no bar, as pessoas já abrem um sorriso muito lindo para nós. Nós somos muito acolhidas. Goiânia, a cidade, as pessoas recebem o bloco com muito carinho. É muito emocionante essa força do encantamento que a fantasia, que a arte traz, que a beleza traz.
A beleza, segundo Espinoza, é um elemento que instiga a alegria. E a alegria é um afeto que quebra as resistências, a rigidez estabelecida nos preconceitos, nas formas mais primitivas de entender o humano, o outro. Então, quando a gente vem com a beleza, alimentado pelo afeto da alegria,, é tão contagiante que é muito raro. Eu, assim, lembro de um único episódio que eu acabei sofrendo uma importunação sexual, mas, assim, foi o único e foi na primeira vez que nós saímos em Goiânia, mas nunca mais depois isso aconteceu. O bloco, ele tem uma aceitação muito, muito, muito positiva na nossa cidade. A gente é muito agradecida, por isso que a gente sempre vai para o Centro. A gente quer mostrar a beleza da cidade, a beleza da nossa arquitetura, a Art Déco, a arquitetura que marca o nascimento de nossa cidade. Uma das minhas fantasias foi uma homenagem à Art Déco. Então, nós só temos que agradecer à cidade, às pessoas aqui de Goiânia por receber o bloco com tanto carinho e com tanto amor.
6 - A bandeira do “Bloco Não é Não” ultrapassou muitas barreiras?
O bloco e a ocupação cultural que ele faz não se restringem mais ao carnaval. A gente acaba desenvolvendo ações durante o ano todo. Nós acompanhamos o próprio calendário de Direitos Humanos, nós estamos presentes no 8 de março, nós estamos presentes no 25 de novembro, nós estamos presentes no mês da primeira infância. Então, à medida que vai acontecendo o calendário de defesa das mulheres, das meninas, da comunidade LGBTQIAPN+, a gente participa da Parada LGBTQIAPN+. Então, a gente acaba trabalhando o ano inteiro. Agora não é só carnaval. A quarta-feira de Cinzas chega e nossa alegria continua lutando pelos direitos das meninas, das mulheres, dos meninos, de todas as pessoas que levam essa força agregadora, cooperativa, que é a força do matriarcado. Por fim, eu quero falar do nosso samba enredo. Nós somos um bloco de carnaval. Bloquinho é muito diferente de escola de samba, mas a gente gosta de trazer ao princípio das escolas, que é um enredo.
Então, esse ano, nós pegamos a nossa primeira bandeira, a bandeira central, que é o enfrentamento à misoginia. E levamos na nossa comissão de frente, nas nossas fantasias, uma ode ao feminino. Nós queremos dizer que o feminino não é o signo do mal, do pecado. Nós não somos fracas. Nós temos potências, tanto do plano de vista artístico, cultural, intelectual. Nós trazemos a completude na avenida. Nós não temos nada de falta. O nosso corpo é todo inteiro, não existe uma comparação entre o corpo masculino e o feminino, trazendo a ideia de que nós temos uma falta. O nosso corpo é completo. E é isso que a gente quer levar para a avenida. Fizemos uma homenagem a uma mulher extraordinária do estado de Goiás. Uma liderança mística da terra, que foi a Santa Dica, que promoveu uma revolução no seu território, distribuindo terras, oferecendo dignidade ao povo trabalhador, fazendo curas, inclusive enfrentando o poder patriarcal e arcaico do coronelismo aqui no interior. É uma figura muito importante, pouco conhecida, que nós queremos ressaltar. E cada mulher vai levar a sua homenagem, no seu corpo, na sua fantasia, a uma mulher inspiradora. Nós trazemos também a campanha da autodefesa e aí a gente traz os marcos das mulheres que desenvolveram as artes marciais ali no Japão medieval, as ninjas e os samurais. Também nas nossas alegorias, porque a gente é forte, a gente é capaz de nos proteger, de proteger quem a gente ama. Nunca fomos sexo frágil.
Assessoria de Comunicação do CRP09