Estamos no Abril Azul, mês de conscientização sobre o Autismo! O Conselho Regional de Psicologia de Goiás (CRP09) entrevistou a Psicóloga Marcella Haick Mallard que atua no acompanhamento de crianças atípicas dentro do Espectro Autista. Ela é especialista em problemas do desenvolvimento da infância e adolescência, em Psicanálise (Teoria e Clínica), é mestre em Psicologia e trabalha com estimulação precoce numa abordagem interdisciplinar. A Psicóloga falou um pouco de sua experiência profissional na Psicologia com pessoas diagnosticadas com TEA. Acompanhe abaixo:
1 - Como você descreveria o seu trabalho com crianças atípicas dentro do espectro autista?
Desde o início do exercício da minha profissão, há mais de 30 anos, trabalho com crianças em sofrimento psíquico e risco na estruturação de sua subjetividade. Ao longo de minha formação clínica me sustentei no estudo, supervisões e prática clínica seguindo os aportes da psicanálise intercalados às formações transdisciplinares que ampliassem a abordagem clínica sobre a infância e, em especial, no olhar de prevenção de saúde mental na primeiríssima infância (zero a três anos).
Embora o autismo tenha sido descrito há mais de oito décadas (1943) pelo psiquiatra austríaco Leo Kanner, ele passa a ser especificamente mais presente na clínica enquanto demanda de tratamento desde a mudança nosográfica de sua definição como Transtorno do Espectro do Autismo na publicação do DSM V (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais). Na quarta versão do DSM, o autismo estava presente como um dos Transtorno Globais do Desenvolvimento, na esteira de uma mudança da classificação diagnóstica onde foi extinta a categoria de Psicoses Infantis. Essa mudança gerou um aumento na notificação de casos.
Se em 1970 a estatística apontava 1(um) caso de autismo entre 25.000 crianças, em 2007 este número cresceu para 1(um) caso em 123 crianças. Ou seja, a própria mudança nos critérios de classificação diagnóstica promoveu um número de notificações em proporções epidêmicas. Com a nova categorização do DSM V o autismo, agora nomeado Transtorno do Espectro Autista ou TEA, é incluído dentro dos transtornos do neurodesenvolvimento e subdividido em três níveis de acordo com a gravidade do comprometimento. A compressão de vários transtornos dentro da categoria TEA concentrou vários diagnósticos nesta classificação o que gerou um desafio clínico maior.
Tudo isto exigiu da minha clínica um cuidado muito maior quanto a definição do que era de fato autismo diferenciando-o de outros quadros pertencentes a outras estruturas. Assim, foi necessário uma ampliação dos estudos que compreendeu o campo da genética e neurologia, para dar a melhor direção ao tratamento.
2. Quais são os principais desafios ao trabalhar com crianças atípicas no espectro autista?
São inúmeros os desafios de se trabalhar com crianças diagnosticadas como pertencentes ao espectro autista, entretanto elencarei os alguns que são estruturantes da clínica. O primeiro é sempre considerar a criança como um sujeito para além do risco psicopatológico, um sujeito cujas produções sintomáticas podem ser significadas como tendo sentido particular para aquela criança e não apenas encara-las como automatismos próprios do quadro do autismo.
É preciso sempre trabalhar, como segundo aspecto, com os pais da criança tanto no sentido de oferecer uma escuta sobre suas angústias, dúvidas e medos quanto ajuda-los a fazer uso legítimo do saber deles enquanto pais para que eles possam entender o filho, convoca-lo a participar do mundo social e compartilhar as alegrias também. Também se faz necessário aprofundar continuamente o estudo sobre as estruturas psicopatológicas e como cada doença se constitui tanto do ponto de vista psicanalítico como estabelecer estudos teóricos transversais com a medicina, genética, pedagogia, linguística e fonoaudiologia.
Outro ponto importante é saber fazer diagnóstico diferencial do que é autismo, psicose e outros quadros de sofrimento que podem se assemelhar enquanto comportamentos, mas que estruturalmente são diferentes. Portanto, a condução do tratamento deve ser diferente também. Estes parâmetros só podem ser adquiridos através de muito estudo e através de capacitações quanto aos IRDI (indicadores de risco no desenvolvimento infantil). Também deve-se entender que o profissional psicólogo ou psicanalista não pode assumir uma posição onipotente de achar que sozinho poderá tratar da criança e sua família. Deverá manter diálogo constante com outros agentes, fonoaudiólogos, os acompanhantes terapêuticos, psiquiatras, pediatras do desenvolvimento, psicopedagogos e todos os profissionais que acompanharem as crianças.
Acredito que seja necessário sempre manter no farol do atendimento a perspectiva de que o psicólogo ou psicanalista está comprometido com a aposta intermitente de que aquela criança é um sujeito, que terá um futuro e que nesse momento está tendo algumas dificuldades. A estrutura psíquica e orgânica não é decidida na infância, precisamos mais do que prever um prognóstico de doença a partir dos signos da patologia, indicar um caminho onde aquela criança possa alcançar crescimento e ter um futuro. A janela de oportunidades da primeira e segunda infância é muito grande, precisamos investir nesse momento.
3. Qual é a importância da rotina e da previsibilidade para crianças com TEA?
Mais significativo do que as rotinas que podem ser tomadas como meras repetições sem sentido, numa perspectiva mais de adestramento do que de apropriação da atividade, entendo que a participação nos rituais, próprios da cultura e da realidade social de cada criança, ajudam-na duplamente. Primeiramente, mantendo uma certa estabilidade de hábitos de vida que são organizadores da experiência de contato com o outro. Num contexto cultural, a delimitação de espaço e de tempo contribuem para a organização da criança psiquicamente. Por exemplo, participar das refeições junto aos pais e não em frente à TV, ao celular ou tablet; participar dos passeios de final de semana com a família; estabelecer horários de dormir, acordar; mostrar quais são as normas da casa aceitando alguns comportamentos e proibindo outros a partir das referências que aquela família tem; levar a criança para brincar com outras crianças em espaços públicos; dentre outros hábitos.
O segundo ganho quanto os rituais será o de não entender a criança como alguém que, por conta de uma dificuldade, não pode se inserir no mundo, como se ela tivesse uma posição de um autômato, objetificada, sem desejos e sem pertencimento, aparteada dos códigos sociais. Ou seja, a criança, uma vez inserida no laço social passa a escolher, apresentar preferências, estilo e até objeções que podem ser validadas desde que estejam dentro das normas daquele grupo familiar específico. A inclusão não é apenas importante do ponto de vista escolar, mas ela acontece antes da entrada na escola. A primeira inclusão da criança é na própria família.
4. Como você lida com comportamentos desafiadores, como crises de agressividade ou autoestimulação?
Todo e qualquer comportamento da criança é lido clinicamente como uma forma da criança se apresentar, como uma linguagem e oportunidade do psicoterapeuta ou psicanalista se aproximar dela. Os comportamentos agressivos, “desafiadores”, as autoestimulações não são tomados somente como signos psicopatológicos, mas como sinais de sofrimento da criança e é nossa função ética ajuda-la a desenvolver recursos para sair desse sofrimento. Como exemplo, quando uma criança fica agressiva com terceiros ou com ela própria, primeiramente precisamos protegê-la para que ela não se machuque, porém, nossa contenção não deverá ser somente física, mas revestida de palavras que deem um sentido para aquela crise de agressividade.
Num tom mais calmo, olhando nos olhos dizemos a criança algo que transmita a seguinte ideia: “você está nervoso e está assustado porque não está entendendo o que está acontecendo, vou te ajudar a se acalmar e logo você verá que as coisas ficarão bem”. Quando ajudamos a dar sentido em palavras ao sofrimento que a criança está vivendo de forma exclusivamente corporal estamos ao mesmo tempo inserindo-a no campo da linguagem, sustentando que o sofrimento dela não é mero automatismo e oferecendo uma presença de um outro. Ou seja, como no autismo as dificuldades em estabelecer laço social e aquisição da fala são muito presentes, não podemos nos abster de nos oferecer como um “outro” assegurador para a criança e convoca-la a entrar no mundo da linguagem, oferecendo nossas palavras para que aos poucos essas palavras possam pertencer à criança.
Assessoria de Comunicação do CRP09