O CRP09 Entrevista conversou com o Psicólogo Sam Hadji Cyrous, doutor em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília (UnB) que representou o Conselho Regional de Psicologia da 9ª Região – Goiás (CRP09) no 1º Congresso Brasileiro de Psicologia e Migração (CBPM), com o tema “Por uma sociedade sem fronteiras”, realizado entre os dias 19 e 21 de junho, em Belo Horizonte, Minas Gerais. Leia a reportagem completa abaixo:
1 – Há quantos anos trabalha com questões relacionadas à migração, como foi o início e os motivos que levaram a se interessar por essa temática?
Trabalho com migração desde antes de nascer! Meus pais saíram do Irã no começo dos anos 80 a caminho do Brasil. Passaram pouco tempo pela Alemanha, e não conseguindo a residência no Brasil, foram para o Uruguai onde nasci. Com pouco tempo de vida, conseguiram a documentação, vieram ao Brasil, e aí vivemos entre Uruguai e Brasil por alguns anos até nos mudarmos para Anápolis onde minha irmã nasceu. De lá, fomos para Portugal, onde me graduei em Psicologia. Fiz meu mestrado na Espanha com período de curta duração na Itália e hoje concluo meu doutorado em Psicologia Clínica e Cultura pela UnB, estudando a transculturalidade. Processos migratórios sempre estiverem à minha volta, desde antes de nascer!
2 – Como foi sua participação representando o estado de Goiás no 1º Congresso Brasileiro de Psicologia e Migração em Belo Horizonte, Minas Gerais? Qual é a importância deste evento para profissionais da Psicologia diante da realidade da migração no nosso país?
Sinto que, para mim, foi uma participação simbólica. E o evento, um evento histórico para o Sistema Conselhos. Um sistema que tem várias lacunas no que tange à população imigrante, impedindo inclusive plena participação no próprio sistema. Ora, se exercemos a profissão e pagamos anuidade, o que nos faz sermos cidadãos de segunda aos olhos das resoluções do Conselho? Se é verdade que nunca senti a nível pessoal qualquer tipo de xenofobia no Conselho, as regras têm um odor forte a isso! E é necessária a mudança. Não cabe numa psicologia que trabalha por direitos universais, termos Psicólogas(os) de primeiro ou segundo escalão, discriminados pelo local de nascimento (o que em si viola uma série de outros arcabouços jurídicos). O que o Conselho Federal fez? Compreendeu esse equívoco e começou a trabalhar por uma inclusão das populações imigrantes. Para mim, pessoalmente, foi de um simbolismo profundo, na medida em que pode ter sido a primeira vez que alguém sem a nacionalidade brasileira tenha exercido o direito de voto numa reunião do sistema conselhos, ainda mais representando a confiança de um Conselho Regional. Foi tamanho o simbolismo que tirei foto da minha mão levantada quando me perguntaram o voto [risos].
3 – Quais são os principais desafios da migração em nosso estado, em nossa cidade?
Lidar com a falta de informação. Você vai ao banco abrir uma conta, tenta o seguro desemprego ou qualquer outra questão social, cartório, dependendo do funcionário uma resposta que você pode ouvir é “você é estrangeiro, não tem direito”. Então, a primeira coisa é informação ao grande público sobre os direitos da população imigrante. O segundo desafio, a meu ver, é a xenofobia. Em vários serviços, em locais públicos, no setor privado há registro de casos de pessoas tratadas de maneira vil ou até subumana. O que me faz pensar na necessidade de uma delegacia especializada eficaz para esse tipo de casos. Mas, para isso, são necessários estudos consistentes. Temos políticas eficazes para o estudo das populações imigrantes? Temos conselhos municipais ou estadual para essas populações? Temos nos Legislativos e Executivos municipal e estadual uma equipe multidisciplinar responsável por políticas públicas para essas populações?
4 – Em geral, a temática da migração ainda não tem a devida prioridade para as nossas autoridades, incluindo poderes executivo, legislativo e judiciário, no tocante às políticas públicas que essa área demanda?
Se a memória não me falha, somos o único estado no qual não temos uma fase estadual da Conferência de Migração e Refúgio, COMIGRAR, que ocorrerá em novembro no Distrito Federal! A resposta está aí! Quantos políticos ou gestores públicos nós temos que tenham nascido fora do Brasil e que possam usar sua subjetividade para ajudar a criar políticas públicas para as populações imigrantes? Como estamos em ano eleitoral, vale a pena refletir acerca: quantos estrangeiros ou filhos de estrangeiros estão (dentro do que a Lei prevê, é claro!) como candidatos e quantos têm reais chances de serem eleitos, ou até nomeados em alguma posição que possa servir a diversidade das populações imigrantes?
5 – O tema é ainda muito pouco tratado ou deixado de lado em escolas, em todos os níveis de ensino, ainda é esquecido ou não recebe a devida atenção como tema de relevância para a nossa sociedade e que precisa ser tratado desde a formação primária?
Sem dúvida! A polêmica disciplina de Ensino Religioso, previsto pela própria Constituição, é um exemplo disso. A disciplina poderia ser usada para falar da diversidade de fés religiosas, ao invés de fazer proselitismo. Disciplinas como filosofia e história poderiam nos oferecer insumos sobre relações entre povos e culturas. Até matemática poderia ajudar, se lembrássemos que os números são árabes. É de pasmar, um país tão plural e rico em diversidade cultural, justamente por parte da sua origem ser nos povos imigrantes, abandonar essa riqueza histórica da tradição, em nome de uma padronização. Dizem que certa vez Jung disse que “nascemos originais”. Viktor Frankl disse que somos todos “únicos e irrepetíveis”. Talvez caiba ao sistema educacional lembrar constantemente a riqueza de sermos como plantas diferentes, embelezando um jardim. Imagina o tédio de ter um jardim do tamanho de Goiás, e nele só um tipo de flor! As relações interculturais nos oferecem um jardim rico em beleza e diversidade.
6 - O tema do Congresso foi “Por uma sociedade sem fronteiras”. Como a Psicologia pode colaborar para que o nosso país busque formas de alcançar uma sociedade sem fronteiras capaz de acolher e dar melhores condições para migrantes?
Um imigrante vive entre dois mundos, o da sua origem cultural, com língua, histórias, tradições e valores diferentes da língua, histórias, tradições e valores de onde vive agora. Isso pode acarretar questões profundas na personalidade, nas relações interpessoais, em suas escolhas. E, com isso, sua própria identidade pode ser por si questionada, não sendo nem mais um nem outro, talvez não tendo rede de apoio, ou talvez se fechando em algum grupo para evitar algum sofrimento profundo. Cabe às pessoas que trabalham com Psicologia e Saúde Mental estudar aspectos da individualidade de quem emigrou e veio, no caso, ao Brasil.
E, não apenas estudar, oferecer, com humildade, o acolhimento necessário para enfrentar desafios que podem ser vividos de maneiras que não são familiares aos locais. Participação em políticas públicas, estudo sobre outras culturas, aprendizado de idiomas, participação de processos de supervisão com especialistas, formação especializada, atendimento voluntário a alguma ONG… Há tanta coisa que pode ser feita. O que não se pode fazer é ver o sofrimento de qualquer pessoa e nada fazer. Medimos a maturidade de uma comunidade pela forma que tratamos aqueles com menos oportunidade, direitos e possibilidades. A forma como se tratam as populações imigrantes é a forma de descobrirmos quem nós realmente somos.
Assessoria de Comunicação do CRP09