Excelência, Investigação e Engajamento

Publicado em 15/07/2011 às 12h00 | Atualizado em 15/07/2011 às 12h00

 

Rosival Lagares*

   O ano de 1997 estabeleceu novos paradigmas na legislação do trânsito,  com  o  advento  no  Novo  Código  de  Trânsito  Brasileiro, diploma  legal  que  trouxe  normas  mais  rígidas  e  penalidades  mais duras  para  os  infratores.  No  campo  teórico  e  prático  denominado Psicologia do Trânsito, no Brasil, o processo de aprovação da lei 9.602 causou grande impacto, em razão da crise vivenciada pelos psicólogos que  atuavam,  naquela  época,  como  sicólogos  responsáveis  pela avaliação psicológica de condutores, atividade então  conhecida como exame psicotécnico. 

  O  episódio  político  do  veto  presidencial  à  participação  dos psicólogos no processo  de  habilitação  de  condutores, por ocasião  da sanção  da  lei  9.602, o Novo Código de Trânsito Brasileiro, obrigou  a esses  profissionais  buscar,  por  meio  de  um  movimento  político, restabelecer  essa  avaliação, o que  conseguiram,  em 20 de  janeiro de 2008.  Entretanto,  a  crise  provocou,  também,  um  movimento  de mudança no interior da classe, no sentido de busca de um novo perfil profissional  do  psicólogo  atuante  nesta  área,  que  passou  a  ser chamado psicólogo perito examinador do trânsito.

  É  importante ressaltar que esse movimento político  iniciou-se de forma espontânea, capitaneado por entidades representativas como a  ANPSITRAN  ?  Associação  Nacional  de  Psicologia  do  Trânsito  e APSTRAN  ?  Associações  de  Psicólogos  do  Trânsito  de  estados  como Goiás, Minas  Gerais  e  outros. Mais  tarde,  o movimento  foi  assumido pelo  Conselho  Federal  de  Psicologia,  que  passou  a  dialogar institucionalmente como o DENATRAN.

  O exame psicotécnico e o psicólogo do trânsito sofreram, então, ataques  de  diversos  setores  da  sociedade,  antes  e  durante  esse episódio, alguns justificáveis, outros nem tanto. Setores envolvidos no processo de formação e habilitação de condutores viam no exame um obstáculo  aos  seus  objetivos  de  aprovar  seus  candidatos,  estivessem estes  aptos  ou  não,  ou  quando  aptos,  que  isso  ocorresse  no menor tempo  e  com  o menor  custo  possíveis.  Desafortunadamente,  alguns profissionais  foram  aliciados  para  práticas  não  éticas  para  a consecução  desses  objetivos,  levando  o  exame  ao  descrédito  entre setores do governo e no meio popular.

  De  outro  lado,  por  ocasião  do  veto  e  das  discussões  que  se seguiram,  no  Congresso  Nacional,  alguns  políticos  e  mesmo  alguns psicólogos atacaram o exame em seu âmago, ou seja, questionando sua validade e sua eficácia no sistema de trânsito, como elemento capaz de garantir maior segurança e  redução do número de acidentes, citando exemplos  de  países  que  não  o  utilizam.  Tais  argumentos  eram contundentes, na medida em que se constatou, então, a inexistência de pesquisas nacionais que pudessem confrontá-los.

  Tal  cenário  levou  os  psicólogos  do  trânsito  a  se conscientizarem da necessidade de uma qualificação nesse campo de atuação,  tal  como    ocorre  em  outras  áreas  da  Psicologia. Inicialmente,  como  primeira  exigência,  imposta mesmo  pelos  órgãos superiores  como CONTRAN  e DENATRAN, o  curso de  capacitação de 120  horas,  o  qual  deveria  ser  concluído  por  todos  aqueles  que  já atuavam na  área e por  aqueles que pretendessem  fazê-lo  a partir de 1998.  Esse  curso  teve  sua  carga  horária  aumentada  para  180  horas, em 2008.

  No  I  Forum Nacional  de Psicologia  do Trânsito,  realizado  em Brasília,  em  1999,    se  aprovava  moção  a  ser  encaminhada  ao DENATRAN  e  CONTRAN,  sugerindo  a  especialização  como  exigência mínima para atuação como Psicólogo Perito Examinador do Trânsito, o que  veio  a  tornar-se  realidade  com  a  Resolução  n.  267/2008,  cuja vigência, nesse aspecto, ocorrerá a partir de 2013. Em seguida, com a regulamentação das especialidades na Psicologia, em 2000, foi criada a base  para  a  formação  de  quadros  de  especialistas  em  número suficiente para atender à futura demanda.

  Estamos, agora, diante de novos paradigmas para a atuação no campo da Psicologia do Trânsito, no Brasil. O primeiro destes é o da 2 excelência,  que  deve  ser  o  escopo  de  todos  aqueles  que  atuam  ou pretendam atuar como psicólogos peritos examinadores do trânsito ou em outras subáreas, como o treinamento e a educação para o trânsito, comunicação, planejamento etc. 

No campo da avaliação psicológica de condutores, a excelência deve  ser  buscada  por  meio  de  aprofundamento  no  estudo  dos métodos, técnicas e instrumentos próprios da ciência psicológica e que distinguem  o  profissional  psicólogo  dos  outros  profissionais envolvidos no processo de habilitação. Isto significa que este psicólogo deve ser um expert no que faz, profundo conhecedor dos instrumentos que  utiliza,  como  os  testes  que  se  destinam  a  aferir  capacidades  e habilidades essenciais para o exercício da tarefa de dirigir, bem como, dos  testes  psicológicos  que  se  propõem  investigar  características  de personalidade do futuro motorista. 

Adicionalmente,  o  psicólogo  do  trânsito  deve  conhecer  o fenômeno  trânsito  como  parte  de  um macro  sistema  de  transporte, com  todas  as  suas  implicações  econômicas,  sociais,  culturais  e ambientais, de  forma a atuar de  forma consciente em uma das várias subáreas.  Ainda,  deverá  compreender  a  transdisciplinaridade  desse fenômeno  e  as  interfaces  da  Psicologia  com  as  demais  ciências  e profissões, como a Sociologia, a Engenharia, a Medicina e o Direito.

Entretanto, a crise trouxe novas possibilidades de atuação para o  psicólogo  do  trânsito,  para  além  da  avaliação  de  condutores,  em áreas até então inexploradas. O movimento de qualificação iniciado em 1997 levou os psicólogos a reconhecerem que a Psicologia pouco vem contribuindo  para  a  formação  do  futuro motorista,  para  a  educação das  crianças  em  um  mundo  motorizado,  para  as  soluções  de engenharia  e  de  comunicação  e,  até  mesmo,  para  a  legislação  de trânsito.

Pesquisas  realizadas evidenciam a deficiência no  treinamento de tarefas como a ultrapassagem, causa da maioria dos acidentes fatais em  rodovias  não  duplicadas.  O  mesmo  estudo  mostrou  que praticamente não se treina a mudança de faixa, durante o processo de formação  do  motorista,  o  que  leva  a  muitos  incidentes  nas  ruas  e avenidas. Até mesmo a necessidade de que o treinamento seja feito em diferentes  horários  era,  até  bem  pouco  tempo,  ignorada.  Ainda  é incipiente a atuação de psicólogos nesse campo, em nosso país.

Da mesma  forma,  no  campo  da  educação  para  o  trânsito,  os psicólogos pouco  têm contribuído para  transformar em  tecnologia de ensino  os  conhecimentos  produzidos  em  pesquisas.  Em  razão  da exigência  legal, assistimos, nesse campo, a tentativas pouco frutíferas, não  sistemáticas,  vindas  de  profissionais  sem  o  envolvimento necessário com o  fenômeno, na   maioria  focadas no motorista ou em preparar  crianças para  serem motoristas, quando os dados mostram que a maior parte das vítimas  fatais dos acidentes de  trânsito são os pedestres, depois os passageiros e, por último, os motoristas.

Outro  campo  de  atuação  ainda  pouco  acessível  para  os psicólogos  é  o  da  comunicação,  ou,  mais  especificamente,  das campanhas  de  educação  para  o  trânsito,  nas  quais  se  alternam  as estratégias  de  terror  e  aquelas  que  utilizam  o  humor  e  onde  a criatividade  dos  publicitários  parece  não  exercer  muito  efeito  nos corações  e  nas  mentes  das  pessoas.  Um  exemplo  típico  da  pouca eficácia  dessas  campanhas  é  a  não  utilização  do  cinto  de  segurança pela maioria dos usuários do sistema de transporte. 

A  Psicologia  do  Trânsito  pode  contribuir  de  forma  mais estreita  com  a  engenharia,  que  tem  como  um  dos  seus  objetivos  o controle  da  conduta  de motoristas  e  de pedestres. Estudos mostram que  soluções  de  engenharia  têm  relação  com  o  comportamento  do motorista  e  dos  pedestres,  podendo  contribuir  com  a  redução  ou aumento  de  acidentes,  conforme  certas  medidas  sejam  ou  não adequadamente aplicadas. Cite-se, como exemplo, a não utilização das passarelas para pedestres em vias de  trânsito rápido ou em rodovias que  atravessam  trechos  urbanos,  caso  em  que  os  engenheiros deveriam observar o que ocorre em outros centros urbanos, nos quais se  utilizam  passarelas  subterrâneas,  combinadas  com  a  oferta  de espaços públicos para prestação de serviços, que parecem ter melhor aceitação  por  parte  dos  pedestres.  Medidas  adotadas  em  países desenvolvidos, como a retirada das rodovias dos centros urbanos ou, quando  isso  não  é  possível,  sua  completa  vedação  ao  acesso  de 3 pedestres, reduzem praticamente a zero as mortes por atropelamento nesses locais.

No que concerne à  legislação, os conhecimentos a  respeito da aquisição  e  treinamento  de  habilidades  deveriam norteá-la  quanto  à possibilidade  de  treinamento  em  idade  mais  precoce,  ao  invés  de permiti-la apenas após o cidadão completar dezoito anos. 

Voltando  aos  novos  paradigmas,  passemos  à  investigação  ou pesquisa, cuja ausência    foi  referida anteriormente. Esta deverá ser assumida como tarefa inadiável pela Psicologia do Trânsito, em nosso país,  para  que  esta  área  da  Psicologia  continue  a  desenvolver-se  e  a constituir-se como especialidade reconhecida pela sociedade. 

Acabou-se o  tempo do psicólogo  como um mero aplicador de testes  psicotécnicos.  Os  novos  tempos  exigem  uma  postura investigativa,  de  contínua  busca  do  aperfeiçoamento  dos instrumentos, da  validação  e da  verificação da  eficácia dos  testes, da correlação  dos  resultados  com  o  comportamento  do  motorista,  do conhecimento  da  causa  dos  acidentes,  dos  fundamentos  da  violência no  trânsito  e da motivação do  crime de  trânsito, entre  tantos outros problemas de pesquisa.

Somente  com  o  desenvolvimento  de  redes  de  pesquisa científica,  orientadas  pela  academia  e  conduzidas  por  aqueles  que vivenciam  o  cotidiano  da  avaliação  psicológica  de  condutores  será possível  avançar  na  produção  de  conhecimento  e  em  direção  ao reconhecimento  dessa  atuação  pela  sociedade.  A  pesquisa  e conseqüente  divulgação  nos  congressos  e  sua  publicação  permitirão aos  psicólogos  do  trânsito  alcançar  ainda  mais  excelência  nas  suas diversas  atuações,  resultando  em  uma  contribuição  efetiva  para  a segurança no trânsito.

Porém, para levarmos a cabo os objetivos acima, é necessário o engajamento  político  dos  psicólogos  do  trânsito,  com  a espontaneidade  e  vigor  manifestados  na  década  de  90,  com  o fortalecimento  das  entidades  representativas  dos  psicólogos,  tanto aquelas  de  âmbito  local  quanto  aquelas  de  caráter  nacional,  não somente  específicas, mas,  também,  de  caráter mais  geral,  como  SBP, ABEP, ANPEP e outras.

O  engajamento  político  não  significa  a  atuação  partidária,  a militância sectária, mas a dedicação de uma parte do tempo à causa da Psicologia do Trânsito, nos fóruns adequados, de forma articulada com os  experts  e  com  os  pesquisadores.  Implica  levar  os  conhecimentos científicos  produzidos  na  área  ao  locus  de  discussão  e  aprovação  de políticas  públicas,  aos  canais  de  discussão  dessas  políticas  na sociedade, como os meios de comunicação. Nesse sentido, o CFP e os conselhos  regionais  vêm  desenvolvendo  importante  trabalho  de articulação.

Ser engajado  significa, ainda, não  furtar-se nos momentos em que surge a oportunidade de manifestar-se, em  todas as  instâncias e, principalmente,  na mídia,  de  forma  segura  e  fundamentada,  sobre  o fenômeno  trânsito, em  sua  complexidade,  seja  como psicólogo perito examinador do trânsito ou em qualquer outra função como psicólogo, nesse contexto. 

Porém, será  possível  um  mesmo  psicólogo  ser  excelente, pesquisador  e  engajado?  Parece  mais  adequado  falar  de  uma Psicologia  do  Trânsito  que  seja  respeitada  por  esses  paradigmas,  da excelência, da investigação e do engajamento, aceitando-se que alguns psicólogos  serão  excelentes  naquilo  que  fazem,  outros  bons pesquisadores e outros, ainda, engajados.

 

*Mestre e Doutorando em Psicologia, Professor da PUC Goiás e do  IPES;  Psicólogo  Especialista  em  Psicologia  do  Trânsito  (CFP); coordenador  de  cursos  de  Especialização  em  Psicologia  do  Trânsito em Goiânia, Salvador e Uberlândia.  

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