Rosival Lagares*
O ano de 1997 estabeleceu novos paradigmas na legislação do trânsito, com o advento no Novo Código de Trânsito Brasileiro, diploma legal que trouxe normas mais rígidas e penalidades mais duras para os infratores. No campo teórico e prático denominado Psicologia do Trânsito, no Brasil, o processo de aprovação da lei 9.602 causou grande impacto, em razão da crise vivenciada pelos psicólogos que atuavam, naquela época, como sicólogos responsáveis pela avaliação psicológica de condutores, atividade então conhecida como exame psicotécnico.
O episódio político do veto presidencial à participação dos psicólogos no processo de habilitação de condutores, por ocasião da sanção da lei 9.602, o Novo Código de Trânsito Brasileiro, obrigou a esses profissionais buscar, por meio de um movimento político, restabelecer essa avaliação, o que conseguiram, em 20 de janeiro de 2008. Entretanto, a crise provocou, também, um movimento de mudança no interior da classe, no sentido de busca de um novo perfil profissional do psicólogo atuante nesta área, que passou a ser chamado psicólogo perito examinador do trânsito.
É importante ressaltar que esse movimento político iniciou-se de forma espontânea, capitaneado por entidades representativas como a ANPSITRAN ? Associação Nacional de Psicologia do Trânsito e APSTRAN ? Associações de Psicólogos do Trânsito de estados como Goiás, Minas Gerais e outros. Mais tarde, o movimento foi assumido pelo Conselho Federal de Psicologia, que passou a dialogar institucionalmente como o DENATRAN.
O exame psicotécnico e o psicólogo do trânsito sofreram, então, ataques de diversos setores da sociedade, antes e durante esse episódio, alguns justificáveis, outros nem tanto. Setores envolvidos no processo de formação e habilitação de condutores viam no exame um obstáculo aos seus objetivos de aprovar seus candidatos, estivessem estes aptos ou não, ou quando aptos, que isso ocorresse no menor tempo e com o menor custo possíveis. Desafortunadamente, alguns profissionais foram aliciados para práticas não éticas para a consecução desses objetivos, levando o exame ao descrédito entre setores do governo e no meio popular.
De outro lado, por ocasião do veto e das discussões que se seguiram, no Congresso Nacional, alguns políticos e mesmo alguns psicólogos atacaram o exame em seu âmago, ou seja, questionando sua validade e sua eficácia no sistema de trânsito, como elemento capaz de garantir maior segurança e redução do número de acidentes, citando exemplos de países que não o utilizam. Tais argumentos eram contundentes, na medida em que se constatou, então, a inexistência de pesquisas nacionais que pudessem confrontá-los.
Tal cenário levou os psicólogos do trânsito a se conscientizarem da necessidade de uma qualificação nesse campo de atuação, tal como já ocorre em outras áreas da Psicologia. Inicialmente, como primeira exigência, imposta mesmo pelos órgãos superiores como CONTRAN e DENATRAN, o curso de capacitação de 120 horas, o qual deveria ser concluído por todos aqueles que já atuavam na área e por aqueles que pretendessem fazê-lo a partir de 1998. Esse curso teve sua carga horária aumentada para 180 horas, em 2008.
No I Forum Nacional de Psicologia do Trânsito, realizado em Brasília, em 1999, já se aprovava moção a ser encaminhada ao DENATRAN e CONTRAN, sugerindo a especialização como exigência mínima para atuação como Psicólogo Perito Examinador do Trânsito, o que veio a tornar-se realidade com a Resolução n. 267/2008, cuja vigência, nesse aspecto, ocorrerá a partir de 2013. Em seguida, com a regulamentação das especialidades na Psicologia, em 2000, foi criada a base para a formação de quadros de especialistas em número suficiente para atender à futura demanda.
Estamos, agora, diante de novos paradigmas para a atuação no campo da Psicologia do Trânsito, no Brasil. O primeiro destes é o da 2 excelência, que deve ser o escopo de todos aqueles que atuam ou pretendam atuar como psicólogos peritos examinadores do trânsito ou em outras subáreas, como o treinamento e a educação para o trânsito, comunicação, planejamento etc.
No campo da avaliação psicológica de condutores, a excelência deve ser buscada por meio de aprofundamento no estudo dos métodos, técnicas e instrumentos próprios da ciência psicológica e que distinguem o profissional psicólogo dos outros profissionais envolvidos no processo de habilitação. Isto significa que este psicólogo deve ser um expert no que faz, profundo conhecedor dos instrumentos que utiliza, como os testes que se destinam a aferir capacidades e habilidades essenciais para o exercício da tarefa de dirigir, bem como, dos testes psicológicos que se propõem investigar características de personalidade do futuro motorista.
Adicionalmente, o psicólogo do trânsito deve conhecer o fenômeno trânsito como parte de um macro sistema de transporte, com todas as suas implicações econômicas, sociais, culturais e ambientais, de forma a atuar de forma consciente em uma das várias subáreas. Ainda, deverá compreender a transdisciplinaridade desse fenômeno e as interfaces da Psicologia com as demais ciências e profissões, como a Sociologia, a Engenharia, a Medicina e o Direito.
Entretanto, a crise trouxe novas possibilidades de atuação para o psicólogo do trânsito, para além da avaliação de condutores, em áreas até então inexploradas. O movimento de qualificação iniciado em 1997 levou os psicólogos a reconhecerem que a Psicologia pouco vem contribuindo para a formação do futuro motorista, para a educação das crianças em um mundo motorizado, para as soluções de engenharia e de comunicação e, até mesmo, para a legislação de trânsito.
Pesquisas realizadas evidenciam a deficiência no treinamento de tarefas como a ultrapassagem, causa da maioria dos acidentes fatais em rodovias não duplicadas. O mesmo estudo mostrou que praticamente não se treina a mudança de faixa, durante o processo de formação do motorista, o que leva a muitos incidentes nas ruas e avenidas. Até mesmo a necessidade de que o treinamento seja feito em diferentes horários era, até bem pouco tempo, ignorada. Ainda é incipiente a atuação de psicólogos nesse campo, em nosso país.
Da mesma forma, no campo da educação para o trânsito, os psicólogos pouco têm contribuído para transformar em tecnologia de ensino os conhecimentos produzidos em pesquisas. Em razão da exigência legal, assistimos, nesse campo, a tentativas pouco frutíferas, não sistemáticas, vindas de profissionais sem o envolvimento necessário com o fenômeno, na maioria focadas no motorista ou em preparar crianças para serem motoristas, quando os dados mostram que a maior parte das vítimas fatais dos acidentes de trânsito são os pedestres, depois os passageiros e, por último, os motoristas.
Outro campo de atuação ainda pouco acessível para os psicólogos é o da comunicação, ou, mais especificamente, das campanhas de educação para o trânsito, nas quais se alternam as estratégias de terror e aquelas que utilizam o humor e onde a criatividade dos publicitários parece não exercer muito efeito nos corações e nas mentes das pessoas. Um exemplo típico da pouca eficácia dessas campanhas é a não utilização do cinto de segurança pela maioria dos usuários do sistema de transporte.
A Psicologia do Trânsito pode contribuir de forma mais estreita com a engenharia, que tem como um dos seus objetivos o controle da conduta de motoristas e de pedestres. Estudos mostram que soluções de engenharia têm relação com o comportamento do motorista e dos pedestres, podendo contribuir com a redução ou aumento de acidentes, conforme certas medidas sejam ou não adequadamente aplicadas. Cite-se, como exemplo, a não utilização das passarelas para pedestres em vias de trânsito rápido ou em rodovias que atravessam trechos urbanos, caso em que os engenheiros deveriam observar o que ocorre em outros centros urbanos, nos quais se utilizam passarelas subterrâneas, combinadas com a oferta de espaços públicos para prestação de serviços, que parecem ter melhor aceitação por parte dos pedestres. Medidas adotadas em países desenvolvidos, como a retirada das rodovias dos centros urbanos ou, quando isso não é possível, sua completa vedação ao acesso de 3 pedestres, reduzem praticamente a zero as mortes por atropelamento nesses locais.
No que concerne à legislação, os conhecimentos a respeito da aquisição e treinamento de habilidades deveriam norteá-la quanto à possibilidade de treinamento em idade mais precoce, ao invés de permiti-la apenas após o cidadão completar dezoito anos.
Voltando aos novos paradigmas, passemos à investigação ou pesquisa, cuja ausência já foi referida anteriormente. Esta deverá ser assumida como tarefa inadiável pela Psicologia do Trânsito, em nosso país, para que esta área da Psicologia continue a desenvolver-se e a constituir-se como especialidade reconhecida pela sociedade.
Acabou-se o tempo do psicólogo como um mero aplicador de testes psicotécnicos. Os novos tempos exigem uma postura investigativa, de contínua busca do aperfeiçoamento dos instrumentos, da validação e da verificação da eficácia dos testes, da correlação dos resultados com o comportamento do motorista, do conhecimento da causa dos acidentes, dos fundamentos da violência no trânsito e da motivação do crime de trânsito, entre tantos outros problemas de pesquisa.
Somente com o desenvolvimento de redes de pesquisa científica, orientadas pela academia e conduzidas por aqueles que vivenciam o cotidiano da avaliação psicológica de condutores será possível avançar na produção de conhecimento e em direção ao reconhecimento dessa atuação pela sociedade. A pesquisa e conseqüente divulgação nos congressos e sua publicação permitirão aos psicólogos do trânsito alcançar ainda mais excelência nas suas diversas atuações, resultando em uma contribuição efetiva para a segurança no trânsito.
Porém, para levarmos a cabo os objetivos acima, é necessário o engajamento político dos psicólogos do trânsito, com a espontaneidade e vigor manifestados na década de 90, com o fortalecimento das entidades representativas dos psicólogos, tanto aquelas de âmbito local quanto aquelas de caráter nacional, não somente específicas, mas, também, de caráter mais geral, como SBP, ABEP, ANPEP e outras.
O engajamento político não significa a atuação partidária, a militância sectária, mas a dedicação de uma parte do tempo à causa da Psicologia do Trânsito, nos fóruns adequados, de forma articulada com os experts e com os pesquisadores. Implica levar os conhecimentos científicos produzidos na área ao locus de discussão e aprovação de políticas públicas, aos canais de discussão dessas políticas na sociedade, como os meios de comunicação. Nesse sentido, o CFP e os conselhos regionais vêm desenvolvendo importante trabalho de articulação.
Ser engajado significa, ainda, não furtar-se nos momentos em que surge a oportunidade de manifestar-se, em todas as instâncias e, principalmente, na mídia, de forma segura e fundamentada, sobre o fenômeno trânsito, em sua complexidade, seja como psicólogo perito examinador do trânsito ou em qualquer outra função como psicólogo, nesse contexto.
Porém, será possível um mesmo psicólogo ser excelente, pesquisador e engajado? Parece mais adequado falar de uma Psicologia do Trânsito que seja respeitada por esses paradigmas, da excelência, da investigação e do engajamento, aceitando-se que alguns psicólogos serão excelentes naquilo que fazem, outros bons pesquisadores e outros, ainda, engajados.
*Mestre e Doutorando em Psicologia, Professor da PUC Goiás e do IPES; Psicólogo Especialista em Psicologia do Trânsito (CFP); coordenador de cursos de Especialização em Psicologia do Trânsito em Goiânia, Salvador e Uberlândia.